Esse texto é dedicado ao meu amigo Ênio San, que nos deixou cedo demais no último sábado sem aviso prévio. E por isso mesmo recomendo tacar o play e ler o texto ouvindo When I’m Sixty four
When I get older, losing my hair
Many years from now
Will you still be sending me a Valentine
Birthday greetings, bottle of wine?
If I'd been out till quarter to three
Would you lock the door?
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?
Tenho tentado não vomitar o que sinto imediatamente após sentir. Um erro. Não sou assim. Nunca fui. E fiz mais amigos que perdi sendo assim. Então alguma coisa em algum momento funciona. Se desandar não é culpa do que sinto, jamais será. Ajustar a forma, não a intensidade. Não desejo nem ajustar a forma, confesso. E já passei dos 40, e como quis chegar nos 40, minha deusa! E celebrar a data como celebrei. Fui feliz e não tenho um pingo de arrependimento. Eu sou muito ruim em me arrepender. Muito.
Um preâmbulo para o que realmente importa mas, antes, esse travessão aqui - hoje fiz uma prova em que a redação era um artigo de opinião em que fiz questão de citar o tema apenas no terceiro parágrafo. Tudo que tinha pra falar antes importava tanto quanto o que coloquei no terceiro parágrafo. Se tergiversei? Provavelmente. De acordo com a banca. Foda-se o que a banca pensa. Me perdoem por tudo, amigos - retomando…
Eu não consegui gostar do roteiro de Fim, da Fernanda Torres, para a Globoplay. Não fui fisgada, sabe? Não me arrebatou, não me fez esquecer de comer, não me fez esquecer de dormir, não me fez esquecer de colocar a comida do Cícero na hora correta. Teor alto de “Carai, Marquinho, isso não vai mesmo prender minha atenção?” - se você não ouve periodicamente Medo e Delírio em Brasília desde 2018 não vai pegar a ref e ok. Ninguém é obrigado a acompanhar meu raciocínio e ainda é liberado me achar over, hein? Inclusive aqui.
Falei pra ele que não havia sido arrebatada e tava mufina porque eu amo a escrita da Fernanda desde antes dela pisar no tapete vermelho do Festival de Veneza com Walter Salles. Ele me manda de volta - voltei pra o Ênio tá, leitor? - leia o livro e vamos conversar. E puta que pariu ele era esse amigo que pedia pra eu ler o livro e convidava pra conversar sobre. Vá se fuder, Ênio. Precisava ser assim? À época eu tava mal de grana e segurei no carrinho de compras. Cinco semanas atrás me envolvi com o trabalho voluntário da Acalanto, espaço que ocupo de forma não regular, não linear desde 2018. Maio é o mês da adoção no Brasil e o tema desse ano estava particularmente um xuxuzinho. Inclusive devendo texto que eu mesma inventei de produzir pra o Saiba Mais. Reportagem. Se eu vou entregar ainda nesse mês de junho ou na semana de adoção do próximo ano? Não sei. Me acompanha que faz sentido o raciocínio. Lara, a amiga que me convidou pra compor a comunicação da Acalanto há anos, tinha o Fim, da Fernanda, e já havia lido. Eu pedi de forma fofa emprestado avisando que sei cuidar de livro alheio e, o mais importante, que eu devolvo. Pode levar alguns anos? Há sempre o risco, mas eu SEMPRE devolvo.
Precisava ler o Fim para conversar com o Ênio. Ele tinha ressurgido das cinzas, nas redes sociais - havia alguns poucos meses. No início fiquei observando de longe naquela rede que não é nem o céu azul nem a rinha com a penúltima letra do alfabeto. A outra lá, que fico de olho apenas em conteúdo de amigos que moram longe dos olhos. Ele nitidamente estava tentando não se afogar. A gente que não se afoga definitivamente sempre reconhece o movimento.
Poço sem fundo de boas referências. Quanto mais a corda do baldinho descia, mais referência boa a gente botava pra dentro do balde. Eu conheci e convivi com o Ênio dentro de um estúdio de rádio. Não há nada mais especial que isso. Não há lugar mais mágico. Não há lugar mais coletivo. Da mesma forma que conheci e convivi com a Bruna, com a Atalija, com a Day, com o Ed, com o Robson e tantas outras pessoas que admiro até hoje. E não tô falando de admirar o trabalho que essa parte - ou defeito de caráter, como queira - eu estou tentando superar na terapia. (E sim, é um defeito de caráter). Eu estou falando de admirá-las enquanto gente mesmo. De carne e osso. E de coração. Muitos corações arremessados ao ar pelo Bob Esponja. Eu gosto de usar o Bob Esponja pra arremessar corações ao ar na outra rede. Afeto puro pra mim.
Gaúcho que fortaleceu, especialmente nos anos de retomada da pandemia, a cena musical e literária em Canela e Gramado, Ênio era pai do Jão. Criança bela. Lá em 2009, quando o conheci, ele me chamou atenção porque ocupou o estúdio da Minha Nova FM, um sonho coletivo de quem gostava de música de verdade aqui em Natal. O sonho aparentemente era de todo mundo, menos do dono, que quando viu que não teria retorno comercial abandonou o projeto. De gente assim eu não gosto. Quero distância. Nisso sou bem seletiva mesmo. E você tá liberado a pensar o que quiser sobre isso, caro leitor. Ainda vivemos em um arremedo de democracia, dominada pelas big techs, mas ainda um arremedo de democracia. Aproveite por que tic tac tic tac tic tac. E a bomba tende a estourar em nossa mão e não na deles. Pois é.

Em 2010, quando decidi que iria fazer intercâmbio com o que tinha em caixa, fiquei frustrada poque eu não iria pra o lugar que sempre sonhei. Ele um dia me pegou reclamando no saudoso twitter de 134 caracteres e me mandou mensagem falando que eu tinha bom gosto até para escolher destinos. E não, gente. Não foi uma cantada. Até porque se tem uma coisa que não me falta é bom gosto hahaha e nisso a gente concordava. Foi só uma forma de a gente iniciar uma amizade que dura até hoje. Me recuso a usar o verbo no passado. Foi ato falho and recusa imediata mesmo.
Ele acompanhou todo o meu intercâmbio, quando soube que eu ia enfim passar o verão no nosso destino favorito em comum, me deu dicas infinitas de como aproveitar o verão na terra de Bethinha da melhor forma possível para o meu bolso. Eu ainda devo ter email dessa época lá no hotmail. Não quero checar.
Quando Aecim colocou pra fora todo o seu potencial inesgotável de minino mimado por vô, ao colocar em cheque o resultado das eleições de 2014, lá tava ele do lado certo da história conversando comigo sobre conjuntura praticamente todo dia no facebook. Nem rede de mensagens instantâneas eu usava ainda. Dizem por aí que eu sou a aquariana menos aquariana da face da terra pois não me rendo fácil a essa sedução do novo. Isso eu acho blasé, inclusive. O novo, na maioria das vezes, é só algo que vai te fuder de uma forma diferente. Ai, desculpa, escapuliu.
Daí em diante o Brasil descambou nesse roteiro de pornochanchada mal roteirizada pra caralho e a gente se segurou online sempre que possível. Quando falei pra ele que havia enlouquecido com a vitória da extrema direita no país e estava com passagem compradaa pra Chicago - o rolé mais errado da minha vida e olha que meu top 10 de rolé troncho é disputadíssimo mas esse ganha fácil - ele só disse que se não fosse o Jão ele tava pegando o avião só de ida também, só que pra um continente diferente.
Em 2024, ainda inebriada com o sucesso do segundo ano do Gente é Pra Brilhar, com a terapia em dia e um concurso agendado pra maio que não aconteceu - foi adiado - pois tragédia no RS, ele me convidou para uma Feira Literária no Sul. Tô com o projeto aberto aqui na outra aba. Eu disse que ia ser massa produzir, ele me arremessa: “Bethise, eu não estou te convidando pra produção. Eu estou te convidando pra ser a cerimonialista, mediadora de mesa, para dar cara ao projeto”. Nunca entendia porque ele achava que eu dava conta. Ele me lembra outro grande amigo que também sempre acreditou e acredita que eu dou conta. Eles são pessoas estranhas? São. Mas eles são pessoas que eu considero lúcidas também. Meu julgamento será que importa quanto a isso? Não sei.
Bem, 2024 pós adiamento do CNU foi um ano, eu diria, um tanto quanto complicado, e o projeto não saiu. Não comigo. Trabalhar junto era um sonho. Pelo menos pra mim. Mês passado fui ver Homem com H, a cinebiografia do Ney Matogrosso dirigida pelo Esmir Filho, o irmão da Sarah Oliveira, a VJ da MTV que eu sempre amei odiar - nada pessoal eu só queria o posto de trabalho dela - e me emocionei feito um bebê chorão, mandei mensagem dizendo que ele precisava ver no cinema. Ele foi. Fez uma postagem anunciando que havia me obedecido e que agora poderia conversar à respeito. Não aceitou eu considerar a ausência de Poema, a canção, no longa imperdoável e me sugeriu assistir o Sem Censura com a Lucinha e o Ney. Ainda não deu tempo de obedecer. Maio foi um mês muito louco, amigo. Vou assistir e tu fica me devendo esse papo, seu canalha. E fica me devendo também eu ter saco pra escutar a reacionária da Vera Magalhães comandar uma roda de conversa com gente tão não à altura dela.
https://youtube.com/clip/UgkxnUfcYq7p0WxU8goyWDS5aWJaXRzRKntc?si=LGlnQjq8rAeT4-yr
Eu poderia passar o restinho da madrugada escrevendo, já já o dia amanhece de novo e tem uma skin que eu uso de segunda à sexta que precisa manter o relógio regulador do sono em dia. Hahaha já vamos iniciar a semana com ele desregulado, com muita emoção, com muita saudade, com um choro preso que eu insisto em transformar em palavras aqui nesse diarinho virtual que já já eu me pico porque puta que pariu, hein? Isso aqui já virou bagunça. O foco é texto, galera. Vamo todo mundo aprender a ser chato direitinho, casseta! Porra de texto curto!
No fim, acredito que o que nos uniu lá em 2009 foi porque captamos a atmosfera rabugenta, caótica e presa na década de 60, 70 e 80 um do outro. Ênio é um excelente observador, eu também. Observo profundamente o mundo ao redor, não me serve de nada mas eu observo. Observo tanto que canso de vez em quando e me perco em não observar. Não observar é legal também. Minha mãe e amigos próximos é que não recomendam muito. Têm seus motivos.
Encerro por aqui com outro trecho da canção dos Beatles falando pra vocês que chegaram até aqui que talvez eu volte só pra contar agora sobre as histórias dele na São Paulo da década de 80, acompanhando um monte de gente boa na música. Que minha revolta em não ter podido me despedir se transforme em calmaria em algum momento. Sua história rende várias trilogias. Te amo. Meu abraço Jão e Lu.
Every summer we can rent a cottage
In the Isle of Wight, if it's not too, dear
We shall scrimp and save (we shall scrimp and save)
Grandchildren on your knee
Vera, Chuck and Dave
Send me a postcard, drop me a line
Stating point of view
Indicate precisely what you mean to say
Yours sincerely wasting away
Give me your answer, fill in a form
Mine for evermore
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?
Whoo!
Que texto lindo.Estou em lágrimas!
Enio tinha amigos incríveis. Tão único, tão gentil, genial, culto e generoso Enio tinha o dom de juntar pessoas únicas e sensiveis, como ele.
Fará falta.0 mundo ficou menor sem ele. E eu mesmo estou encolhendo.
Receba meu abraço fraterno de amiga do Enio . (A credencial "amiga do Enio" carregarei 4ever, com orgulho).
Digno de Enio esse texto!